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APONTAMENTO DA NOSSA HISTÓRIA | AS DUAS VARIANTES DA LENDA DA NOSSA SENHORA DO SALTO: ANÁLISE INTERPRETATIVA

A “Lenda da Nossa Senhora do Salto”, em Aguiar de Sousa, concelho de Paredes, integra um género narrativo de literatura tradicional oral que vale a pena conhecer e analisar estruturalmente, de forma sucinta, duas das suas variantes nestes apontamentos da nossa história!
Há muito que a paisagem geológica do Lugar do Salto impressiona os habitantes do concelho e os visitantes, que se deixam contagiar pela singularidade do património natural, sem que, durante muito tempo, soubessem explicar as razões para o fenómeno do “Inferno”, monstruoso e surpreendente, cuja “Boca” dá passagem ao rio Sousa, tão próximo da capela da Nossa Senhora, no fundo do vale, e das “pegadas do cavalo”.
A capela, datada de 1723, ampliada depois da sua construção, surge efetivamente associada a uma lenda relativa a Nossa Senhora e a um milagre por ela realizado, como tal erguida em sua homenagem. Vem citada no “Catálogo dos Bispos do Porto”, no I tomo do “Dicionário Geográfico”, em 1747, nas “Memórias Paroquiais de 1758”, e é, a Nossa Senhora, uma das mais de mil invocações em Portugal. Apesar de existir uma festa no primeiro domingo de maio de cada ano, não se verifica um culto assíduo, mas uma grande afluência do povo ao local para cumprimento de promessas à Nossa Senhora e fruição do lugar, que tanto tem de belo como de horrível. A Nossa Senhora aparece, igualmente, referida no “Cancioneiro do Concelho de Paredes que para o povo escreveu o Padre Moreira das Neves”, em 1971:
Nossa Senhora do Salto,
Lírio do cerro deserto:
O teu altar fica alto,
Mas tu estás sempre perto.
Passa o rio entre rochedos,
Passa o rio lá no fundo,
Como se, tendo segredos,
Não os queira dar ao mundo.
Um cordeiro se perdeu
Entre os silêncios da Serra.
Por mais que sejas do céu.
Nunca te esqueces da Terra.
Quem te visite, que aprenda
De ti, que és Mestra em doutrina.
Anda o teu nome na lenda?
A lenda também ensina.
Talvez o rio que passa,
Como outro rio qualquer,
Vá cheio da Tua graça,
Mais do que da água a correr.
Dizem que Ahmer, o Almançor,
No lugar Te antecedeu.
Mas ficou o Teu amor,
E o ódio de Ahmer morreu.
Todas as sombras se vão
E cada vez mais além.
Só não se vai o clarão
Que dos teus olhos nos vem.
O que a população então narrou, transmitindo e ensinando consecutivamente às gerações seguintes, soma, na ação, os motivos à religião e ao maravilhoso, e tem duas variantes essenciais, ambas com unidades mínimas dentro da própria história.
A primeira das variantes da história conta que um cavaleiro (personagem principal), que andava a cavalo, é perseguido pelo demónio (personagem principal antagónica), apercebendo-se do infernal precipício e da eminente queda. Muito aflito, invoca Nossa Senhora, exclamando:
- Valha-me Nossa Senhora!
Ao herói, a cavalo (uma espécie de co-protagonista) aparece-lhe a Nossa Senhora, que, adjuvando-o como personagem secundária, afirma perentória:
- Atira-te à vontade!
De seguida, o cavaleiro e o cavalo rolam para o precipício, dando um salto até a uma laje do rio, que, por efeito da invocada Nossa Senhora, fica mole como cera, evitando qualquer perigo.
A impressão das cinco marcas na laje do rio resultaria, de acordo com o ensinamento do povo, da marca das quatro patas e do focinho do cavalo ao aterrar com o cavaleiro no seu dorso, livrando-se poeticamente da morte, e justificaria o nome da padroeira da Capela, Nossa Senhora do Salto, erguida num lugar inóspito e muito pouco povoado.
A segunda das variantes da história mantém, na ação, o mesmo lugar e tempo, a mesma estrutura do relato, isto é, a ordem existente (situação inicial – o cavaleiro que andava a cavalo), a ordem perturbada (corpo ou nó da ação – o cavaleiro é perseguido pelo demónio) e a ordem restabelecida (situação final ou conclusão – intervém a Nossa Senhora, dando uma ordem ao cavaleiro para que o cavalo dê um salto até a uma laje de pedra mole, evitando a morte de ambos).
No entanto, há uma alteração no que à personagem do demónio diz respeito, pois, quem ouve é induzido em surpresa e mistério, acreditando na lebre que o cavaleiro persegue, que não é senão o demónio disfarçado que o atrai para o precipício. Há, outrossim, a referência a uma amada que era muito devota de Nossa Senhora, ao passo que o cavaleiro não era, confirmando-se uma mensagem cultural e religiosa para o relato. O cavaleiro devia então cumprir um castigo por não ser efetivamente devoto, apenas sendo salvo, expiando todos os pecados, cumprindo a promessa da construção da capela.
Foi o poeta e botânico Augusto Luso da Silva que recolheu, em 1874, esta variante da história de tradição oral, em Aguiar de Sousa, tudo levando a crer que, de fato, “quem conta um conto acrescenta um ponto”. Posteriormente, converteu-as em quadras, publicando-as no jornal “O Primeiro de Janeiro” e no livro “Impressões da Natureza”:
Pela serra d'Abelheira,
Montado em nédio corcel,
Leva seguida carreira
Um cavaleiro donzel.
A barba luzente brilha
Do orvalho que em gotas cai;
Fareja veloz matilha
Que em roda saltando vai.
Não vê dez braças em frente
Com tamanha névoa assim!
Ouve saltar de repente
Os cães a latir! enfim,
Rompe-lhe rápida lebre
Que ali lhe escapa do pé!
Deita a correr com tal febre,
Que nada teme nem vê.
A lebre corria adiante,
E ele atrás, sempre a correr.
Ia o cavalo ofegante
Já em suor a escorrer.
Ela ia de rabo alçado,
E o via seguir atrás,
Por ter os olhos de lado;
Que fino que é Satanás!
Mas eis que chegando à beira
Daquele abismo… saltou;
E no inferno matreira
Pelo rio se escapou!
Ele ia, enfim, sem receio
E cego, a bom galopar;
Não pode reter o freio,
Sente o cavalo saltar,
E sente do ar a corrente
Que as faces cortar-lhe vem;
Vê-se suspenso e pendente
Sobre o abismo também!...
Valei-me Virgem Senhora,
Valei-me sou pecador;
Por mim não, mas por ela agora,
Que sois todo o seu amor.
E sem o menor abalo,
(tal não viu Nazaré),
Firme se achou no cavalo
Na parte oposta de pé!
Mui contricto e arrependido
Feria o peito co´a mão;
E se votou decidido
Da Virgem à devoção.
Mas para lembrança sua,
Daquele milagre ali
Tosca ermida, pobre e nua,
Foi levantada por si.
Depois contava em segredo,
À que era do peito seu,
Como saltara o rochedo
Como a Virgem lhe valeu.
Que ele d´ali se partia
Agora aos santos lugares
Mas que a Virgem os veria
Unidos em seus altares.
Se pudéssemos recuar 540 milhões de anos, veríamos o Lugar do Salto coberto por mar, correspondendo a um conjunto de rochas constituídas por xistos, grauvaques, arenitos, quartzitos e conglomerados. Mais tarde, há 380 milhões de anos, formou-se uma grande dobra chamada Anticlinal de Valongo. O rio Sousa, atravessando com força as rochas mais duras e resistentes, formou troços do vale encaixado pela erosão, a “Boca do Inferno” ou o “Canhão do Salto”. A própria corrente, em conjunto com seixos e areias, originou as marmitas de gigante, as depressões arredondadas, que o povo explicou outrora como as “pegadas de cavalo”.
Pela importância geológica, a diversidade de habitats e a elevada biodiversidade, a paisagem do Lugar do Salto faz parte do grande pulmão verde da Área Metropolitana do Porto, Parque das Serras do Porto, classificado e considerado como Sítio de Importância Comunitária da rede de áreas protegidas da União Europeia (Natura 2000).
O inexplicável é hoje explicável, mas a Lenda da Nossa Senhora do Salto, pelo misticismo associado, não deixa de continuar a inspirar os artistas, os escritores, os poetas, o povo que, oralmente, continua a transmitir a lenda de geração em geração. Recentemente, no transato ano de 2021, o escritor Jorge Palinhos, munido de bibliografia e recolhendo a oralidade, reescreveu a Lenda para o projeto Mappa – Música, Artes e Património em Paredes, promovido pelo Município, com direção artística e coordenação da Astro Fingido, para um concerto falado de nyckelharpa, no Mosteiro de Cete, monumento que integra a Rota do Românico.
Eu própria escrevi um conto infantil, recorrendo à memória do lugar mágico, de fauna e flora invejáveis, ainda não publicado, a que dei o título de Bernardo e a Borboleta do Vale de Torga, lembrando-me das urzes arroxeadas que cobrem, de forma formidável, o espaço. Com esta história escrita, pretendo, de uma outra forma, dar a conhecer às crianças a Lenda da Nossa Senhora do Salto, uma história tradicional que nasceu do povo para o povo.
Quando foi a primeira vez a Aguiar de Sousa, escreveu José do Barreiro na Monografia de Paredes, em 1922, perguntando a um homem que o acompanhava, “ao ver negrejar no fundo do vale e o rio desaparecer ou sumir-se na terra”:
“- Ali é o inferno?!
- É sim senhor.
- Se não tivesse já esse nome, dava-lho eu agora.”
Dezembro de 2022
Beatriz Meireles
Vereadora do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Paredes
Bibliografia:
BARREIRO, José (1922) - Monografia de Paredes. Porto: Tipografia Mendonça (A Vapôr), págs. 228 - 246.
FERREIRA COELHO, Manuel (1988) - Monografia do Concelho de Paredes. 1 – Freguesia de Aguiar de Sousa. Paredes: Câmara Municipal de Paredes, págs. 64 - 67.
MEIRELES, Beatriz (coordenação)(2020) - Orpheu Paredes – Revista Cultural. Paredes: Câmara Municipal de Paredes, págs. 78 - 80.
MEIRELES, Beatriz (coordenação) (2022) - Orpheu Paredes – Revista Cultural. Paredes: Câmara Municipal de Paredes, págs. 34 - 39.
NEVES, Francisco Moreira das (1971) - Terra Verde – Cancioneiro do Concelho de Paredes que para o povo escreveu o Padre Moreira das Neves. Paredes: Gráfica de Paredes, págs. 26-28.
PERALTA, Alexandre (1999) - A comunicação e a literatura popular. Lisboa: Plátano, págs. 107- 111.
PINTO, Ricardo (1996) - Paredes – Jóia do Sousa... Paços de Ferreira: Anegia Editores, págs. 74- 78.