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A Via Sacra em Cristelo














A vivência da narrativa da Paixão de Cristo é das manifestações culturais e cultuais mais representativas da identidade cristã e que teve como promotor dessa manifestação religiosa a veneração dos lugares santos de Jerusalém. Após o Concílio de Trento (1545-1563) e dos movimentos da Reforma Católica e da Contrarreforma, o culto cristológico intensificou-se e difundiu-se pelas paróquias, fundamentalmente durante o século XVIII, originando várias manifestações populares e associativas de piedade cristã, como são o caso das confrarias e Irmandades. Nesta altura, como forma de materializar a Paixão de Cristo e de convidar à meditação surgiram as vias-sacras pontuadas por cruzeiros, evocando a subida de Cristo ao calvário.
Por todas as freguesias do concelho de Paredes, os cruzeiros são verdadeiros marcos na paisagem, ora definindo a jurisdição paroquial ou a assinalarem um facto histórico, ora a sagrarem um lugar, ou traçando um caminho sagrado – a via-sacra ou via da cruz.
Na freguesia de Cristelo, após um breve processo de investigação no terreno, conseguiu-se estabelecer uma relação entre os vários cruzeiros dispersos pela freguesia. Efetivamente estamos na presença de um importante conjunto edificado de passos da via-sacra, datados do século XVIII, com início na igreja matriz, onde se encontram, no adro, duas bases sem cruz. O cruzeiro paroquial poderá, também, ter feito parte do itinerário sacro, cuja base está soterrada. Passando para o lugar da Vila, temos um cruzeiro envolvido por uma pequena capela (que descreveremos mais à frente) e que nos reporta para a 5ª estação. De seguida, na Vinha Velha, encontramos outro cruzeiro com a inscrição “VARONICA 1733”, que nos transporta para a 6.ª estação. Em Longra, outro incompleto, inserido atualmente num muro de propriedade privada com a base parcialmente soterrada. Os restantes encontram-se implantados ao longo de uma colina acentuada, no lugar do Calvário, num total de 14 estações. Refira-se que do topo da colina, de solo rochoso, com cerca de 350m de altitude, obtém-se um domínio visual, voltado para oriente, que permite alcançar uma paisagem de longa distância.
A observação in loco permite-nos inferir que a Via-sacra de Cristelo foi sendo completada e intervencionada ao longo dos tempos, desde logo por algumas datas inscritas, mas não cronologicamente sequenciais, bem como pelo tipo de granito. Na sua maioria, caracterizam-se por cruzes singelas ou com uma canelura a emoldurarem as hastes, como é o caso do cruzeiro da Vinha Velha. Assentam num soco cubiforme, alguns dos quais com faces decoradas por motivos geométricos em losango, por vezes com a data inscrita ao centro, ou então com a gravação de símbolos da paixão como é o caso da cruz, ligeiramente inclinada, numa das bases existentes no adro. As datas epigrafadas enquadram esta via-sacra na primeira metade do século XVIII. A data mais antiga é de 1717 e está associada a uma inscrição gravada em duas faces da base e que indica ser a nona estação, localizada já no início da colina do Calvário, “ESTA HE A N / ONA EST / ACAM FEI / TA NO AN / NO DE / MIL E SE / TE CEN / TOS E 17 / ANNOS”, ou seja, “ ESTA É A NONA ESTAÇÃO FEITA NO ANO DE MIL SETECENTOS E DEZASSETE ANOS”. Por sua vez, a data de 1726 está inscrita numa das bases localizada no adro e que poderá corresponder à 3ª estação, pela representação da cruz numa das faces, a recordar a primeira queda de Jesus. A 5ª estação está bem identificada pela representação escultórica de “Jesus é ajudado por Simão Cireneu a levar a Cruz”, datado de 1730 e a 6ª estação com a data de 1733.
Tal como já havíamos referido, a 5ª estação, reveste-se de inigualável importância, e destaca-se pela sua singularidade em todo o concelho de Paredes. Está localizada junto à casa da Vila, sendo sua pertença, a marginar o que terá sido o antigo caminho. Possivelmente, o proprietário terá sido um dos patrocinadores desta estação dotando-a de uma beleza e representação cénica de grande simbolismo cristão. Refira-se que à época, o lugar da Vila era pertença da Vila e Honra de Sobrosa e portanto à “Casa do Infantado”. O Passo desta via-sacra em 1747 foi transformado, num pequeno oratório, bem ao gosto Barroco. A Cruz, datada de 1730, assenta numa base cúbica, rematada por um bloco retangular em formato de capitel, decorado por caneluras e ressaltos boleados, por onde trespassa a haste da cruz. Esta está decorada com motivos geométricos interligados de dupla canelura e em alto relevo, com paralelismo na freguesia de Meixomil, do vizinho concelho de Paços de Ferreira (PEREIRA, ARAÚJO, COSTA, 2007) e a face inferior dos braços está pintada com motivos vegetalistas. A meio da haste sobressai uma peanha nervurada, aonde assenta uma placa granítica, esculpida em alto relevo com a representação de Cireneu, a auxiliar Jesus caído, com a cruz. Tudo é acolhido por uma estrutura arquitetónica, totalmente de granito, teto e cobertura abobadados, fachada de frontão triangular, cunhais apilastrados com remates piramidais (falta um), abertura/entrada de moldura saliente e padieira em arco redondo abatido. Entre o centro do arco e o vértice interior do frontão surge um bloco de pequenas dimensões com uma rosácea hexapétala inserida num círculo. No interior, apesar de estar com muito musgo, líquenes e eras, consegue-se observar vestígios de revestimento com pinturas. A este conjunto arquitetónico temos vindo a designá-lo como oratório, uma vez que a mensagem deste Passo da Paixão de Cristo foi reforçada pela representação escultórica e pela construção da pequenina capela.
Com base nesta análise, podemos levantar hipóteses em relação à definição e construção deste itinerário religioso. Por um lado, podemos dizer que os cruzeiros da Via Sacra foram edificados em momentos distintos, atendendo às diferentes datas assinaladas, assim como pelo tipo de granito e diferentes detalhes técnicos observáveis nas construções. Por outro lado, também poderá ter ocorrido, ao longo dos tempos, sucessivas reformas das cruzes, incluindo mesmo, eventual deslocalização como consequência da pressão urbana.
Hoje, podemos afirmar que, no século XVIII, a população de Cristelo aderiu ao culto da Paixão de Cristo, procedendo à construção dos respetivos Passos da Via Sacra, culminando num Calvário.
Este é um exemplo em como a História local se apresenta como um mecanismo importante que nos poderá dar uma base para conhecer o passado e com isso compreender o nosso presente e a realidade na qual estamos inseridos. Entendemos, que só uma maior compreensão daquilo que é a História Local e o Património, por parte das populações em geral, permitirá um maior reconhecimento da sua importância e salvaguarda destes pontos históricos. Deste modo, impõem-se o desenvolvimento de uma profunda consciência patrimonial, que passa pela divulgação e estudo destes monumentos. O percurso em questão, neste “apontamento”, apresenta um conjunto de cruzeiros que se destaca pela sua importância em termos históricos, artísticos e culturais, pelo que importa preservar e guardar memória.
Março de 2024
José Mendonça Costa
Maria Antónia Silva
Bibliografia:
PEREIRA, Ricardo, Araújo, Jorge, COSTA, Miguel (2007) – Alminhas, Cruzeiros e Vias-Sacras do Concelho de Paços de Ferreira. Religiosidade e Cultura Popular. Paços de Ferreira: Câmara Municipal de Paços de Ferreira. Orgal-Impressores.